sexta-feira, 27 de março de 2009

Renascimento de um vivo

O renascimento do Dr. Arruda
Por Luciano Almeida



- Faça tudo que seu patrão mandar!- Diga a todos que eu morri!
O mundo era muito novo para ela. Aos 14 anos, conhecera, pela primeira vez na vida, a vida urbana da cidade grande, chegada do interior do interior do estado. Olhos continuavam com um misto de arregalo e susto da primeira semana em que deixara a casa de palha dos pais e oito irmãos para trabalhar em período integral na casa do médico que, por meio de um e outro conhecido, resolveu apostar em trazer alguém de maior confiança para cuidar da bela casa na região dos Jardins. Estava cansado de trocar de doméstica toda semana por negligência ou furto de objetos da residência. A última tinha roubado até suas cuecas, carregando um saco cheio de roupas, remédios do freezer e um peito de frango assado da geladeira. Entre os pobres revoltados e os tolos, apostava agora nesses últimos ao trazer uma “colaboradora” de tão longe, onde talvez a pureza de intençoes ainda prevaleça.
Tudo era muito estranho, no começo, como estranho é todo começo. Carros nas ruas, buzinas, barulhos esquisitos a quem era acostumada a outra sinfonia de barulhos, como o assovio do vento no milharal, galos e gafanhotos se expressando em silvos agudos, ou no máximo uma coruja piando para assombrar a noite em arrepios desconjurados. Para se chegar à localidade onde a menina morava era necessário muita coragem para andar em estradas de pedregulhos, com curvas sinuosas subindo e descendo os morros que dominavam a região. Nem tv, nem geladeira ou chuveiro quente – só um radinho de pilha. As velas e lampiões dominavam a noite quando a família se reunia, rezava um terço com a mãe ajoalhada em frente a um pequeno oratório de madeira e em seguida cama, dormindo logo depois de um dia de buscar pasto para a vaca leiteira, capinar inço na plantação e matar e depenar uma galinha para o almoço, enquanto a maior panela encardida pela fumaça ficava fumegando no fogão à lenha desde o clarear do dia com o feijão com toucinho. De novidade e aventura somente as poucas noites em que o pai e a mãe faziam barulho no quarto contíguo, separado por uma fina parede de madeira.
A proposta apareceu, e o pobre pai não teve muito o que pensar (“pobre não tem escolha”), aceitando deixar Leleca arrumar sua trouxinha e seguir, chorando um choro sentido no banco de trás do carro do vereador local.
A primeira impressão da garota foi indescritível quando entrou na cidade grande e o veículo quatro portas estacionou em frente à mansão do novo patrão, onde tudo parecia brilhar e ofuscar a visão e a mente para um estado de catarase, uma hipnose diante daquelaestranha e nova realidade. Não fosse chamarem a sua atenção, orientando-a aonde ficava seu dormitório, aonde deveria deixar sua coisas particulares, quais as principais tarefas diárias e ficado estipulado o dia do pagamento - nunca tinha imaginado que 350 reais um dia seriam só seus assim, reunidos no mesmo bolo de notas - ficaria parada como mais uma estátua no acesso da mansão.
O patrão e sua família eram gente boa e cristã, havia garantido o vereador que arrumara o serviço. E realmente era. Sempre em seu jaleco branco, combinando com a cor dos poucos cabelos restantes, o médico era educado, falava pouco. Sua mulher, advogada, como o marido tampouco parava em casa. Chamavam a atenção de Leleca toda vez que ela não realizar a tarefa como desejado, mas tudo com muita educação, sem gritos, como fazia o próprio pai da menina. Só o casal habitava aquele verdadeiro palácio de princesa, como escutara uma história ser contada pela professora da escolinha primária. Os filhos há muito já tinha feito a própria vida e raramente apareciam para uma visita, a não ser em festas de aniversário, fim de ano e outras celebrações das quais não se deve escapar.
A primeira semana transcorreu com muita dureza, afinal terminar de tirar o pó de tantos cantos e objetos de todos os pesos, ã e tamanhos não era para preguiçosos. E disposição para o trabalho era o que não faltava na menina, de canelas finas e na fase em que os seios mais se parecem mais como brotos do que mamas. Ainda havia a cozinha, a roupa para lavar e passar (sua principal dificuldade, pois só conhecia ferro a carvão) ocupavam quase todo o tempo. Atirava-se ao serviço como uma garantia diante daquela realidade que demorava um pouco a se acostumar. No fundo era uma moleza para quem pegava no pesado no campo. Tinha suas vantagens, pois até uma tv preto e branco estava no seu quartinho de empregada, aos pés da cama espremida no pequeno tamanho da dependência que ainda contava com um armário de roupas só para ela, sem ter que dividir com a penca de irmãos como estava habituada, misturando calcinhas com carpins, blusas e camisetas – a maioria trapos. Além disso, ficava a maior parte do tempo sozinha, sendo interrompida nos seus afazeres pelo tocar do telefone, o qual tinha medo, pois não sabia o que dizer, o que responder.
Pouco adepto de ataques de stress, o velho médico no entanto acordou monstro naquela sexta-feira, sendo acordado logo cedo pelo soar do telefone. Estava agitado, derrubou o café na calça e pela primeira vez descarregou seu estresse na menina, perturbada pelo outro chefe que agora se apresentara a sua frente, furioso e grosso no trato, outro homem. Um processo, o que seria esse tal processo, pensaria mais tarde meia hora depois do médico ter saindo voando pela porta em direção ao carro, arrancando queimando pneus no asfalto? Com a mulher, ele comentava à mesa, entrecruzando os dedos de forma nervosa, a sua situação. Depois de 30 anos de carreira, errara. Errara feio, esquecera uma gaze no interior de uma paciente que pegara uma grave infecção e agora estava em coma na UTI. O raio x comprovou um corpo estranho nas entranhas. E agora estava descontrolado como há muito não ficava.
O casal logo levantou de forma brusca das cadeiras que ocupavam e saíram apressados para a garagem. Leleca queria perguntar como deveria se portar ao telefone, mas não deu tempo de perguntar nada diante dos patrões. Mais tarde descobriria que em certas ocasiões não se deve interromper os superiores para o bem da própria pele. Viu a valise do médico sobre a cadeira e em seguida o próprio retornando apressado para pegá-la.
- Doutor, o que eu digo se ligarem atrás do senhor?
- Diga a todos que morri! Que morri! – cuspiu o cirurgião, saindo rapidamente da sala novamente.
Tudo muito estranho, na cidade grande. Ora essa, dizer que morreu sem morrer, era um absurdo. Porém ordem é ordem, e na sua memória ainda via o pai e mãe recomendarem muitas e muitas vezes como deveria se comportar na cidade;
- Faça tudo o que seu patrão mandar, fia!
Não demorou muito e no meio da manhã o primeiro telefonema soou pela ampla sala com seus sofás de couro, a mesinha de centro, o tapete persa onde ninguém pisava (pois era persa). Limpando as mãos no avental, a empregada doméstica quase caiu para correr e saciar aquela buzina estridente do aparelho que metia medo na menina.
- O Doutor Arruda, está?
- Nâo, ele morreu - respondeu Leleca, cumprindo as ordens das duas maiores autoridades a quem devia se subordinar.
- Cooomo?
Essa insistência do outro lado da linha não estava prevista, e a menina com obrigações de mulher não soube o que dizer nem o que fazer e desligou. Nada mais deveria falar. O fone tocou de novo quando ela já se dirigia ao fogão para baixar o fogo do assado.
- Já, disse ele morreu, morreu, entendeu?
E desligou de novo. Finalmente o silêncio tomou conta da casa, para sossego de Leleca que, de forma ousada, ligou seu radinho que trazia do outro mundo, o original e diverso do que agora lhe mostrava novas caras. Não por muito tempo a paz durou, e nova chamada agitou o corpo da menina, pega de surpresa. Era outra voz dessa vez que perguntava:
- Por obséquio, o doutor Arruda está?
- Morreu
- ....
E bateu o fone no gancho. E assim foi a rotina daquele dia, último útil da semana para a maioria da população. Várias chamadas, várias comunicações sucintas. Naquele dia os patrões, como costumavam, não apareceram para o almoço nem informaram nada. Estavam do outro lado da cidade reunidos o médico, a mulher advogada e outro advogado, amigo da família. Ficaram trancados discutindo nervosamente o erro médico. A imprensa estava no encalço do cirurgião, e por isso tiraram o fone do gancho e viraram a placa para FECHADO na porta de vidro fumê da entrada da sala comercial, cessando de operar os celulares. Ficaram até as cinco da tarde em mil elucrubações para safar o doutor. quando só então voltaram a se realinhar com a situação de terror que um descuido único em três décadas de profissão provocara.
Antes de seguirem para casa, contataram o hospital. A mulher do Arruda ligou á enfermaria do hospital para saber se a mulher de trinta anos que operara de forma mal sucedida havia demonstração algum tipo de reação daquele estágio, dizem, que mistura vida com morte numa ponte que interliga os dois mundos num túnel que leva a um a luz. O fato é que o médico agora era um menino assustado, à beira da ruína e da insanidade aguda.
- Milagre, ela abriu os olhos agora a pouco – berrou a mulher do médico, em meio a lágrimas, deixando o aparelho cair, abraçando o marido, bom homem uma vida toda, que não acreditava em Deus mas agora comemorava a sorte que o destino lhe guardava.
O ambiente de euforia tomou conta do escritório, e até a cabeça de alce canadense que servia de porta-palitó parecia mais alegre. Saíram dali e foram direto à UTI. Com um nó na garganta o envelhecido e desalinhado Arruda entrou pelos fundos, para não cruzar com algum fofoqueiro da desgraça alheia, jornalistas abelhudos que não largam o osso e são capazes de ficar horas em campana. Não foi notado, e subiu dois andares de dois em dois degraus para não perder tempo. Entrou na ampla sala verde claro onde homens e mulheres vegetavam ligados a respiradouros eletrônicos e parafernália com porta-soro, máquinas fazendo bip bip para cima e para baixo em gráficos verdes escuros numa espécie de digitalização dos últimos instantes.
- Me desculpe, me desculpe, eu errei, estou arrependido, por favor... – dizia o menino Arruda com os olhos vazando em cascatas pelos cantos do rosto.
A paciente já havia voltado para o lado de cá da ponte e também já superara aquela fase do ‘quem sou eu, onde estou’ que geralmente perturba a pessoa saída do nada absoluto novamente para a vida, embriagada como ao acordar pela manhã depois de um longo período de bebedeira. Não entendia o que o Dr. Arruda dizia, estranhava aquele velho pulando de felicidade, quem era o maluco? Aos poucos lembrou da cirurgia de úlcera para reduzir o abdômem, objetivo não alcançado na ginástica. Os enfermeiros tiraram o alterado Dr. Arruda da sala que fica na fronteira entre o tudo ou nada para não prejudicar a recuperação dos entubados ali perfilados em suas camas de ferro. Na saída abraçou veementemente o pai e a mãe da jovem vaidosa. Conseguimos, conseguimos. Foi Deus, doutor, foi Deus. Arruda sorriu e logo seguiu para fora do hospital, respirando um ar que pareci fresco como nunca experimentara.
Foram para casa, os corpos do casal agora acusando toda a carga de tensão que carregaram durante aquele longo dia de tortura mental que enfim tinha um final feliz. Cair na cama e dormir, quem sabe por mais de um dia. Fazer amor, quem sabe. Paz para os justos e para os imperfeitos com anos de experiência. Para fugir de qualquer chato (o animal símbolo dos repórteres deveria ser o urubu) na entrada da residência, decidiram entrar pelos fundos, pelo terreno baldio, um dos poucos sem construção em cima, que dá acesso à porta da cozinha.
O médico entrou na frente, seguido da mulher. Um som semelhante a um uivo com muitos uuuus ecoou da sala ampla que exalava um forte cheiro das coroas de flores espalhadas por sofás. A interjeição coletiva era dos muitos conhecidos do Dr. Arruda, que estava ali para velar o corpo do amigo. Afinal, depois que os primeiros que ligaram para casa e receberam a mesma e única informação – “ele morreu” – do outro lado da linha, a notícia se espalhou no meio de comunicação de massa mais humano de todos, o boca a boca. Logo um avisou o outro e seguiram durante a tarde para a residência, antecedidos pelas coroas que chegavam aos Jardins entregues por floriculturas que sabem o quanto a morte pode ser lucrativa graças a clientela permanente.
Dr. Arruda, com as pupilas dilatadas ao extremo, realmente ficou branco como um cadáver fresco ao ver tal cena despauterada; ali reunidos lutos em ternos e vestidos pretos, estes curtos conforme determinava e, bem verdade, serviam para tornar o velório bem menos sofrido, dependendo do par de coxas tristes ali presentes e enfiadas em meias igualmente negras. A primeira reação do dono da casa foi encarar a empregada, a encolhida Leleca, sacudi-la com violência e perguntar se ela havia enlouquecido ou se era o golpe de misericórdia de um dia miserável.
Ao sair do estado catatônico (nada que se assemelhasse a experiência que sua paciente passara), o velho Arruda ia começar a proferir as primeiras palavras a doméstica disparou na frente:
- Fiz o que senhor me mandou hoje, fiz o que meu pai mandou: fazer tudo o que o senhor mandar, e o senhor disse que era pra falar que tinha morrido, mesmo tando vivo.
Um passo atrás foi a reação instantânea que o corpo do morto-vivo, ou vice-versa, esboçou. Era verdade, na ânsia de sair para a reunião com o advogado, livrar-se das perguntas dos microfones e câmaras, dera a ordem. Batata quente nas mãos da coitada.
Diante dos abraços e tapinhas que começou a receber da cerca de uma dúzia de conhecidos, colegas, pacientes e amigos fazendo fila, demonstrando felicidade (alguns ficaram frustados no fundo, mas disfarçaram bem) de encontrar com vida o querido cirurgião que ainda não juntar os pés à eternidade.
Dr. Arruda não teve mais dúvidas, chamou a empregada num canto, pegando-a com leveza pelo braço e mandou servir cervejas, uísques, vinhos e tira gostos armazenados na despensa à espera das festas natalinas do mês que vem. Convidou a todos a esperar por um churrasco de carneiro que fecharia a festança daquela noite.
O mais animado era o próprio velho Arruda, dançando com guirlandas de flores sobre o tapete persa, manchado de cerveja. Afinal, não era todo dia que a vida vencia a morte.

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